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REPORTAGEM COMPLEXO DO CEMITÉRIO DA SAUDADE: o descanso eterno dos escravizados em Campinas

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      Entre os meses de julho e novembro de 2019, quatorze túmulos de escravizados foram introduzidos no Complexo do Cemitério da Saudade (atual Cemitério da Saudade). A busca para encontrar esses túmulos preciso primeiro passar por acervos, bibliotecas, Câmara Municipal, livros digitalizados na internet, e na administração do Complexo da Saudade. Não é nada simples obter acesso e identificar documentos referentes aos sepultamentos de escravizados no século XIX, na cidade que tem um fama de ter sido a mais cruel com a população escravizada. O primeiro não, obtive no Complexo do Cemitério da Saudade, como contarei ...

“Aqui no Cemitério, só temos registros no computador dos corpos enterrados a partir de agosto de 1892. Não há preocupação em registrar os enterros antes desse ano, então, qualquer nome que você me apresente antes de 1892, não consigo localizar a sepultura” ( Carlos S. Responsável pela administração do Complexo da Saudade)

   Receber receber a informação acima, entendi que o Cemitério da Saudade, teria apenas dados de ex-escravizados. E ainda assim, eu teria que ter em mãos o nome, sobrenome, dados de morte morte ex-escravizados. Resolvi começar a pesquisa pelos acervos.  A se estendeu no Acervo Municipal, localizado no bairro Swiss Park na Rua José Oscar Gratti. Em contato prévio, por e-mail, com um chefe de setor de pesquisa e divulgação do Arquivo Municipal, Regina Joselita Barbosa dos Santos, foi disponibilizado o acesso aos livros dos sepultamentos em Campinas no século XIX. O acervo atende apenas às quartas e quintas-feiras, no horário das 9h às 15h. Foram necessárias várias consultas, por três semanas consecutivas nos livros de sepultamentos.

   Para manusear documentos antigos é preciso alguns cuidados, como me orientou um chefe do acervo: em cada página, é exigida cautela, para que não venha a ocorrer rasuras, uma vez que os papéis com mais de 100 anos, já estão frágeis e deteriorados pelo tempo. Outra dificuldade comum aos documentos centenários, é a falta de dados: não podemos comparar, por exemplo, os atestados de óbitos de hoje em dia, nos quais constam informações como nome, sobrenome do falecido, filiação, estado civil, com a indicação de quadra e sepultura a esses documentos que buscamos. Os registros antigamente escritos eram à mão e constam biliões informações, às vezes, apenas o nome do escravizado sem o sobrenome, nem sempre contém o nome do cônjuge, além da ortografia que muitas vezes problema o entendimento do que foi escrito. Nenhum livro pode ser tocado sem luvas e é recomendado também o uso de máscaras para evitar contaminações. Segundo Regina Joselita, os livros eram guardados dentro dos cemitérios e ainda contém a poeira antiga lugares.

   A busca também aconteceu em documentos encontrados no Centro de Memória da Unicamp, livros Atas das Igrejas e atestados de óbitos checados com Cúria Diocesana de Campinas. Segundo a Cúria, a Igreja Católica era responsável pela emissão de atestados de óbitos no século XX, sendo esse trabalho realizado pelos padres da cidade. Os documentos dos enterros realizados em Campinas até o ano de 1920, estão arquivados no Acervo da Cúria localizado na Avenida Aquidabã. Após essa data os registros de óbitos passam a ser emitidos pelos médicos e registrados nos cartórios civis da cidade. Mas na Cúria ocorrido de modo mais aprofundado, tendo que informar: nome, sobrenome, dados exata da morte do escravizado, nome do cônjuge e nome do seu senhor ou ex-senhor no caso de escravizado livre. Como último recurso, orientada pela antropóloga Maísa Faleiros, utilizei as ferramentas do site “familysearch”, para encontrar livros de óbitos do século XIX.

   A localização dos 14 escravizados que cito no início desta reportagem, só foi possível nos livros em que está indicando a nacionalidade morta, vindos do Continente Africano. Em alguns alguns registros constam o estado civil do escravizado, nome do cônjuge, número da quadra e da sepultura. Há uma informação em comum para todos os escravizados, que constam como católicos. Fato este, que se explica, porque os cemitérios no século XIX e XX aceitavam apenas enterros de Cristão.


POR QUE CAMPINAS RECEBEU TANTOS ESCRAVIZADOS?

    No século XIX, Campinas chegou a ter mais de 50% da sua população composta por escravizados. Para entender o por quê a cidade denominada tantos escravizados é necessário entender a economia que se pratica no século XVII e XIX. Para a antropóloga e pesquisadora do NEPO (Núcleo de Estudos de População 'Elza Berquó) na Unicamp, Maísa Faleiros, o tipo de economia práticada em Campinas foi um dos fatores principais para a concentração da grande população escravizada na cidade.

    Segundo a pesquisadora, Campinas teve uma economia voltada para o abastecimento / plantio. Neste tipo de economia acontece a monocultura, que é quando se explora o solo com o cultivo de um único produto, sendo uma cana de açúcar no contexto de Campinas e depois sendo substituída pela plantio de café. Faleiros ainda explica, que a economia agrícola campinense, não foi importante apenas para o Brasil, mas para o mundo. E a inserção do escravizadoo nessa economia foi fundamental, por ser mão de obra barata.

    Campinas se tornou uma das cidades mais importantes na rota de exportação do açúcar no século XVIII, começando seus engenhos a partir de 1790, quando a cidade deixa de pertencer ao bairro rural de Jundiaí e ganha o nome de Vila de São Carlos. Seus engenhos de açúcar, têm início com grande procura pelo produto, principalmente pela demanda internacional, por isso, se fez necessário aumentar a oferta e para se ter mais cultivo da cana de açúcar é necessário aumentar a mão de obra. Nesse contexto, os senhores dos engenhos compram mais escravizados, vindos do Continente Africano-, adquiridos por meio do tráfico negreiro. Sendo uma excelente aquisição para o senhor do engenho, porque que pagava-se por esse escravizado aos traficantes negreiros uma única vez, podendo posteriormente lucrar com esse mesmo escravizado ao vendê-lo ou alugá-lo para outro senhor.

“Valia a pena para o senhor do engenho comprar caro o escravo, porque o escravo aqui em Campinas produzia muito”.

    Campinas passa a ser requisitada pelos países estrangeiros, como Inglaterra, por exemplo, para exportar o açúcar derivado da cana. Começa-se a chegar mais e mais escravizados à cidade, vindos pelos portos do Rio de Janeiro e Santos. Segundo Faleiros, entre 1830 e 1840, a produção do açúcar estava a todo vapor. Em 1842 a Vila de São Carlos é elevada a título de cidade, requerendo ainda mais moradores que enxergam na economia agrária uma chance de recomeçar uma nova vida.

    Em 1850, acontece o fim do tráfico negreiro, mas escravizados continuam chegando em Campinas, como explica Faleiros. 

“Começa-se a importar escravizados de outras províncias como, Bahia, Maranhão, do Rio Grande do Sul. Nessas províncias a economia não estava tão pujantes ”

AS DOENÇAS MAIS COMUNS ENTRE A POPULAÇÃO ESCRAVIZADA EM CAMPINAS.

   Para entender quais as doenças que mais acometiam os escravizados, conversamos com Matheus Alves Albino. Albino é economista pela USP Ribeirão Preto e defendeu a tese sobre “Escravizados enfermos da Santa Casa de Misericórdia de Campinas”. Albino estudou as internações entre 1776 e 1900. Teve acesso aos livros de registros da Santa Casa e levantou o número de 1981 escravos que deram entrada nesse período. Segundo o economista, desse total, 18% morreram, cerca de 374 escravizados. Mesmo as mulheres dando entrada em menor número, eram as que mais morriam por complicações pós parto. Segundo Albino, alguns escravizados chegavam ao atendimento da Santa Casa de modo tardio para receber tratamentos. Primeiro o escravizado tentava se curar com suas ervas e quando chegava a Santa Casa poderia ser tarde demais:

“O fato dos escravos que chegaram tardiamente à Santa Casa, não é por uma negligência pura e simples do senhor que não levava o escravizado para ter atendimento médico, mas sim uma tentativa anterior de tratamento com ervas que esses escravizados conheciam, em que muitas vezes chegou a agravar a doença, ocasionando mortes”.

   A medicina da época não tinha pleno conhecimento de como tratar muitas doenças que surgiam. Muitas vezes, a demora em diagnosticar a doença e encontrar o tratamento adequado fez com que muitos escravizados morressem. Albino também relata que o escravizado recebia socorro por parte do seu senhor, porque o incentivo econômico em salvar os escravizado da morte era algo que interessava ao senhor, principalmente após o fim do tráfico negreiro e os escravizados pararam de chegar da África.

  Outro dado importante é que nas pesquisas o economista descobriram que alguns escravizados acima de 60 anos, considerados velhos na época, eram abandonados por seus senhores nos leitos da Santa Casa. 

As tabelas abaixo indicadas como doenças que mais levaram os escravos a óbito, segundo matrículas de enfermos citadas na pesquisa de Albino.

Fonte: ALBINO. Matheus alves. Revelando a doença e a morte:
morbidade e mortalidade em Campinas, 1875-1900, 2020, p.154

Continua...

  




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